Conta-se que ao concluir a escultura da Pietá, Michelangelo teria parado diante da obra finalizada e teria dito: “Parla!” (Fala!).
O que separa o bloco de mármore da belíssima estátua que hoje recebe os peregrinos na entrada da Basílica de São Pedro em Roma? A genialidade de Michelangelo.
Mas, de onde vem a genialidade de Michelangelo? De onde vem a inspiração do artista?
Há alguns anos, ouvindo uma fala sobre arte, a professora dizia: tal qual o místico, o artista não é “dono” da inspiração.
Os artistas me entenderão: há aquele sagrado momento em que a inspiração vem. Às vezes, quando menos se espera, o projeto parece vir completo à cabeça. Às vezes, e isso também é intrigante, uma inspiração matura por anos no coração do artista.
Se conhecemos minimamente a vida e a obra de algum místico, entendemos que a base da vida mística se firma na abertura total a ação de Deus. Quando lemos as páginas de Santa Teresa de Jesus, a santa que reformou o Carmelo, por exemplo, percebemos um coração aberto à experiência de Deus, ao mesmo tempo que, por meio de sinais visíveis, Deus manifesta sua obra na vida de Teresa, não como uma graça particular somente, mas para a santificação de todo o corpo da Igreja.
Tal e qual, também pela arte, Deus realiza e manifesta sua beleza no mundo. E aqui não quero priorizar este ou aquele tipo de arte. Mesmo em tempos nos quais o entretenimento sobrepõe a arte e o lucro determina o que é arte consumível ou não, para o artista, o sagrado momento da inspiração constitui não só um momento sublime de relação com o criador, mas também um canal de comunicação/revelação do criador com os homens.
Há vários anos, os papas promovem encontros com os artistas. São famosas as cenas de João Paulo II, por exemplo, dando gargalhadas com uma apresentação circense. O santo, que na juventude foi ator, deixou inclusive peças teatrais escritas. “A Loja do Ourives”, por exemplo, é um belíssimo texto do papa polonês que fala de amor e relacionamento, e não é um texto explicitamente cristão.
Como a mística, a arte se faz pela atração de dois polos: a graça e a realidade humana. Por isso, o artista conta ao mundo a sua história de vida e, nela, se contempla a obra de Deus tranvestida de fragilidades humanas.
Acho que vale um exemplo não confessional que me inspira:
Uma brasileira que recebeu da BBC de Londres o título de “Voz brasileira do milênio”: Elza Soares. Aos 91 anos, a artista segue entregando ao público sua arte, sua vida e sua voz rouca inconfundível. Ela sempre fez questão de contar o início dessa história: Viúva aos 21 anos e com quatro filhos para criar, inscreveu-se no show de calouros do Ari Barroso. Muito magra, pegou emprestado um vestido da mãe e, de alto a baixo, ajustou com alfinetes. Ao entrar no estúdio para se apresentar, Ari Barroso impressionado com aquela mulher negra, magra e malvestida perguntou: “de que planeta você vem menina?” (…) “Ô seu Ari…do mesmo planeta que o senhor…do Planeta Fome”.
Como essa não é uma conversa sobre a vida de Elza Soares, vou fazer um salto de quase 70 anos.
A mulher que teve a ousadia de se intitular “A mulher do Fim do mundo” e já sem poder andar idealizou um show sentada no melhor estilo Mad Max (essa referência só os trintões entenderão), vestida de saco de lixo, não para de se reinventar para alinhavar sua história. No último trabalho, apareceu de pé, escorada, vestida e toda ornada com alfinetes, de cima a baixo. Com o álbum “Planeta Fome”, na minha rasa compreensão, Elza arremata não só sua carreira, mas sua história. É a arte de uma mulher que soube tirar da sua história os sinais. Ela recupera nos alfinetes suas origens, e canta em Planeta Fome sua história.
Alguém poderia me perguntar: “Mas você vai falar de Elza para leitores cristãos?”
Vou deixar que ela mesma responda:
Desde que me entendo por gente
Eu saquei que Jesus Cristo
Morreu na cruz por nós inocente
Pra provar que a vida é isto
Morreu na cruz por nós inocente
Pra provar que a vida é isto
(Trecho da música Elza Soares, Letra de Itamar Assunpção e interpretação de Elza Soares)
Richard Oliveira
Richard Oliveira é formado em Filosofia pela Faculdade Católica de Pouso Alegre e cursando teologia na mesma Faculdade. É seminarista na Diocese de Guaxupé, MG. No Katholika é redator no portal, roteirista e diretor nas produções audiovisuais.