A Santa Escritura contém a codificação da Palavra que Deus pronunciou ao se revelar ao seu povo. Essa revelação se deu de modo gradual e pedagógico. A Palavra que Deus pronunciou é uma realidade viva capaz de criar a matéria, de constituir um povo, de chamá-lo à salvação e, assim, forjar uma história que não pode ser outra coisa que palco da realização do projeto salvífico de Deus. E justamente por isso, essa história não é estática e sim dinâmica, pois nela atua o próprio Deus.
Para os israelitas, chega-se ao conhecimento de Deus e do seu agir quando se olha para a história, pois em alturas distintas Deus se irrompeu no mundo para alcançar o homem, para se dar a conhecer e para indicar o caminho que leva a Ele. A experiência de fé dos israelitas é tão histórica que o seu próprio credo é um condensado de fatos históricos (cf. Deuteronômio 26, 5-9).
O rumo da peregrinação histórica dos israelitas é indicado pelo Deus que por amor se revelou, elegeu para si um povo e, por meio de uma relação de aliança, ou seja, por meio de um pacto, conservou-se no meio, ao lado e acima desse povo para protegê-lo, acompanhá-lo e conduzi-lo. Na verdade, trata-se de uma história escrita em parceria entre Deus e o seu povo. Deus revelou, gradualmente, a sua vontade, respeitando assim a maturação espiritual progressiva do seu povo. Na medida em que o povo compreendia a vontade de Deus a seu respeito, os autores sagrados escreviam, sob moção do Espírito Santo, os relatos dessas experiências concretas.
Deus não somente se revelou, mas se entregou como Pessoa. Essa revelação e essa entrega não se deram por meio de uma espécie de ditado e sim por meio de ações e de palavras intimamente relacionadas entre si (cf. Dei Verbum 2). Deus, ao agir e ao pronunciar sua Palavra, criou tudo o que existe e se deu a conhecer. E tudo isso está disposto na Santa Escritura que é a “Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo” (Dei Verbum 9).
A compreensão cristã da Santa Escritura é muito completa, pois considera os dois momentos constitutivos da história da salvação: a preparação e a realização. O tempo da preparação, por meio das promessas, compreende todo o conteúdo que está compendiado no Antigo Testamento. O tempo da realização, por meio do cumprimento das promessas, compreende todo o conteúdo que está compendiado no Novo Testamento. Essa compreensão cristã situa a Igreja numa relação de ruptura e de continuidade com Israel.
Santo Hilário de Poitier ensina que a Santa Escritura “está escrita mais no coração da Igreja do que nos instrumentos materiais” (Liber ad Constantinum Imperatorem). Logo, o verdadeiro acesso a essa codificação da Palavra de Deus só se dá dentro da Igreja, dentro do Corpo de Cristo. No coração da Igreja, ou seja, no coração do Corpo de Cristo, está escrita a Palavra viva que Deus quis pronunciar para fazer o seu amor transbordar e alcançar o homem, criando assim uma reciprocidade entre Deus, o sujeito amante, e o homem, o objeto amado. Esse amor de Deus pelo homem é personalizante, ou seja, é esse amor que torna o homem pessoa, entendida como sujeito de natureza racional.
Esta reflexão tem por finalidade despertar nos leitores o desejo de uma aproximação à Santa Escritura. Para que esse avizinhamento ao texto sagrado aconteça, de modo proveitoso, é necessário ter em mente os seguintes pontos: o texto em si; o significado profundo do texto; as normas para o reto agir; e a direção para a vida espiritual. A reta compreensão da Santa Escritura deve ter em conta esses pontos que são a sistematização do sentido literal e do sentido espiritual da Santa Escritura. Há uma máxima medieval que traduz muito bem essa realidade por meio dos seguintes dizeres: “A letra ensina o que aconteceu; a alegoria, o que deves crer; a moral, o que deves fazer; a anagogia, para onde deves caminhar”.
Que a leitura e a meditação da Santa Escritura avizinhem as pessoas do próprio Deus, o divino dialogador, que é a fonte da Palavra pronunciada e codificada nos livros sagrados! Que os buscadores de Deus leiam e interpretem os textos sagrados, degustem as letras da Palavra divina, sob o mesmo Espírito Santo que inspirou os autores sagrados (cf. Dei Verbum 12).
Padre Robison Inácio de Souza Santos
Padre Robison Inácio de Souza Santos, Diocese de Guaxupé (MG), é mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e membro do corpo docente da FACAPA (Faculdade Católica de Pouso Alegre - MG).