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O VERBO SE FEZ INDIGÊNCIA

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Havia algo de divino no rosto sofrido daquele mendigo. Não esqueci o primeiro encontro e por alguma razão a qual não tive acesso ainda, fui marcado por muitos primeiros encontros. Primeiros, pois não os considero como sequência de encontros, mas como únicos e um a um me propiciou vida. Experiência única de intensidade transformadora. É impossível amar sem se mover, e quando se abre o coração à experiência do amor, somos desinstalados.

Mas, como amar alguém que fede? Como tratar como igual um homem apodrecido e abandonado? Aos poucos percebi, ainda que a duras penas, que me faltava muito para alcançar a altura de um indigente.

Sofri pela demora em perceber o divino revestido por carnes pobres. É fácil poetizar sobre pobreza, o difícil é tocá-la gratuitamente. E não é um ato heroico encontrar os mais pobres. Não há nada de heroico em estar de baixo de uma ponte conversando com alguém que o sistema excluiu. E não há nada de poético nisso também. Mendigo fede, também pode ser ingrato e, muito ao contrário do que muitos pensam, são gente com nome, história e problemas.

Colocar neles um selo com o nome de Jesus não resolve nada nem para eles, nem para nós. O encontro místico querido por Cristo nessa aproximação com os pobres abandonados, que temos a oportunidade de escolher fazer, passa pela confluência de histórias e vidas. É permitir que aquela vida ferida me atinja e, movido de compaixão, fazer a experiência de compartilhar dores. Uma fusão profunda de horizontes: ele e eu!

Para além das minhas experiências pessoais, vale dizer que existe algo estranho no serviço de atendimento às pessoas de rua. Geralmente são tratados como massa, apenas um número. O que importa às instituições é sempre o número de marmitas que foram entregues, ou quantos atendimentos foram feitos naquele dia. Até as instituições religiosas mais radicais preocupam-se mais com o número de “irmãos” atendidos.

Irmãos? Somos todos irmãos, mas em muitas situações o “apelido carinhoso” é como que uma desculpa para não se comprometer com cada um. José, João, Paulo, Antônio. Quando eu chamo alguém pelo nome, ajudo a localizar a pessoa na existência. Se nome dá dignidade, identidade, quanto mais a uma pessoa que perdeu todas essas categorias.

Deus tem um jeito estranho de se encontrar conosco, e é difícil compreender a estranha mania de um Deus que se oculta nas carnes dos miseráveis. Talvez porque conheça a nossa natural soberba e queira nos possibilitar uma cura existencial de tal grandeza que nos permita reconhecê-lo além da aparência.

Se somente os puros verão a Deus (Mt 5), então para reconhecê-lo assim tão indigente é preciso lavar muito bem os olhos e o coração. É preciso deixar-se dobrar, curvar, prostrar para reconhecer o menino no cocho de animais, o bandido pregado nu na madeira e o indigente abandonado na praça da igreja.

Richard Oliveira

Richard Oliveira é formado em Filosofia pela Faculdade Católica de Pouso Alegre e cursando teologia na mesma Faculdade. É seminarista na Diocese de Guaxupé, MG. No Katholika colabora como redator no portal, roteirista e diretor nas produções audiovisuais.