Por Richard Oliveira
Morei um tempo num Leprosário. Confesso que de início não me pareceu uma boa ideia. Seria um mundo totalmente diferente de tudo que eu havia conhecido até aí. Cheguei ao Rio de Janeiro num dia de chuva. Um trecho de trem e mais um tempo em um ônibus pelo Subúrbio. Desci do ônibus e comecei a subir o Morro pelo meio das árvores e a impressão que tinha é que o Rio de Janeiro tinha ficado para traz. Parecia, para mim, um mundo paralelo. A primeira coisa que a gente avista é o prédio do Hospital. Depois de uma curva no morro a gente se depara com os pavilhões, depois a quadra e a Igreja no centro do Complexo. As outras coisas só se vê andando pelas ruas da Colônia: o Prédio Psiquiátrico, o Posto Policial e as Vilas. Se o “turista” se aventura um pouco mais, no final de uma das Vilas verá a entrada da Favela, que naquela época ficava guardada por homens com fuzis.
Não é um mundo comum, mas era o comum daquele mundo onde coabitavam leprosos de todas as espécies, famílias, pessoas pobres da Favela, policiais e traficantes. A casa que morei ficava embaixo da Igreja.
Aquele lugar de pluralidade impressionante tinha sua harmonia. A polícia nos abandonou deixando o Posto Policial fechado. Havia prostitutas que faziam programas com os doentes; havia Missionárias da Caridade e Irmãs de Foucault que vinham de vez em quando nos visitar; havia Bailes Funk muito animados às sextas-feiras; havia os traficantes; havia doentes em todas as fases da doença; havia charlatões exploradores da condição alheia; havia famílias e crianças; havia as pessoas da Favela e os tiroteios da guerra do Tráfico; havia Jogo do Bicho e Loteria; havia um sistema de som com o qual podíamos falar com toda a Colônia e com a Favela e o padre local, também, usava para rezar.
Havia aí uma “Lenda”, ou não, que se contava nas conversas quando eu cheguei: um membro do Tráfico, depois de trair o Chefe do Morro, fugiu, jurado de morte. Depois de um ano, imaginando que aquilo havia passado, o infeliz voltou à Colônia como se nada tivesse acontecido. O chefe mandou matar o moço e, para comemorar, mandou fazer um grande churrasco na quadra da Colônia. Todos tiveram que participar, inclusive a família do rapaz. Pra mim aquele era o sinal de que a vida ali não era um conto de fadas ou um I Fioretti franciscanos. Ameaçados o tempo todo pelas guerra e violência dos confrontos entre Facções e Polícia, o caminho possível era ignorar essa realidade mesmo estando submergido nela e buscar nos rostos sofridos e nas histórias de abandono um sentido para minha própria vida.
Nesse mundo paralelo eu conheci o “Molokai”. Ele era um Mendigo, leproso e cego que vagava pelas ruas da Colônia. Ninguém sabia de onde ele vinha nem para onde ele ia. Era uma figura estranha, um mendigo com todas as características de um homem muito desumanizado. Cheirava mal, andava com uns sacos de sucata e, como era cego, levava um cabo de vassoura para tatear o caminho. Ninguém sabia seu nome nem sua história.
Um dia, resolvi segui-lo para ver onde ele morava. Segui à distância, pois ele era um pouco agressivo. Entrou num dos pavilhões abandonados, caminhou para o fundo de um corredor e entrou em um quarto. Esperei alguns minutos e cheguei à porta. Ele logo gritou: “Se veio falar de Deus pode dar meia volta, porque aqui Deus não entra”.
Minha reação foi imediata: “Não vim falar de Deus. Queria apenas conhecer você”. Depois de algum silêncio ele retrucou: “o que leva um jovem a querer conhecer um velho cego, podre e pobre?”
O quarto que ele morava não tinha nada além de uns papelões num canto onde ele dormia, fezes e restos de comida no chão e uma cadeira. Eu entrei e me sentei.
Minha astúcia me fez pensar: “ele é cego então não pode ver que trago sinais religiosos. Para entrar no mundo desse homem, não posso falar de Deus e nem falar nada que expresse minhas convicções religiosas”.
Falamos de muitas coisas nas várias visitas que fiz a ele. Para mim era incompreensível que um ser humano pudesse ter chegado até ali e ainda tivesse forças para viver. Totalmente indigente, o Molokai era capaz de rir das próprias desgraças e querer continuar vivendo.
Eu não falei de Deus para ele, mas ele me evangelizou muito mais do que eu podia imaginar. Aquela cadeira solitária no meio de um quarto que cheirava fezes e carne podre, por várias vezes, foi como a cadeira de uma Escola. O livro era escrito pelas marcas daquele homem. O Mestre se revelava nas histórias e, principalmente, nos significados que com aquela experiência minha vida era marcada.
Eu não sei como termina a história do Molokai. Sei que passei pela vida dele para ser marcado por aquelas lepras e, principalmente, para aprender a olhar o mundo com os olhos daquele cego. Meu maior desafio com ele era ser presença de Deus sem falar de Deus. Abriu-se aí, para mim, uma fissura gigantesca que martiriza o Cristianismo e eu pude vê-la. A distância entre o Discurso e a Vida. É muito fácil falar de Deus e do Amor. O difícil, é ser presença de Deus e amar. Como disse, aquela cadeira foi para mim uma Escola e, o Divino Mestre, escondido naquelas lepras, tentou me ensinar que o Cristianismo é bem mais do que belos discursos. No fim das contas, o Leproso era eu.
Richard Oliveira é formado em Filosofia pela Faculdade Católica de Pouso Alegre e cursando teologia na mesma Faculdade. É seminarista na Diocese de Guaxupé, MG. No Katholika colabora como redator no portal, roteirista e diretor nas produções audiovisuais.