Por Richard Oliveira
Recebi um telefonema estranho. Na chamada alguém dizendo de um homem negro, idoso, que vivia há muitos anos em um valão. A ligação pedia que pudéssemos tentar resgatá-lo. Aos não familiarizados com o termo “valão”, ele indica um rio de esgoto que corre pelo meio da cidade.
O José vivia há muitos anos em um valão desses, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Ele era um senhor que aparentava ter uns 70 anos, negro, vestido com restos de pano e sacos de lixo, com uma sacola amarrada na cabeça. Se mendigo fede imagina como fedia o José que era mendigo e morava no meio do esgoto.
Ele estava ali há mais de 30 anos pelo que diziam as pessoas do bairro. Sua desconexão social era tão avançada que no seu “mundo invertido”, o valão era uma fazenda que ele herdou de seu pai. As sucatas que desciam pelo valão, o José recolhia e plantava em canteiros no meio do esgoto. Fazia isso o dia todo. O que ele comia? Não sei. Talvez restos do lixo, talvez ratos ou baratas. Ninguém ousava descer lá.
Imbuídos de orgulho heroico descemos ao valão. O orgulho heroico se desfez pelo contato com o mau cheiro e a visão ampliada daquela cena miserável. Aquela força que faz inexplicavelmente ir além, sobressair sobre as náuseas e enxergar o outro que espera fragilizado nos fez estabelecer com ele um diálogo de muitas perguntas e poucas respostas. Ele não nos olhou e continuou plantando seu lixo no esgoto. Quando percebemos que o nosso mundo estava distante do dele, a saída foi mergulhar no seu mundo invertido. Então ele nos olhou. Chamando-me de patrãozinho me deu atenção. Eu perguntei da sua fazenda, da sua plantação, quando seria a colheita, onde ele ia vender. E ele disparou nas respostas muito bem elaboradas. Foi então que vi aí a oportunidade de levá-lo para nossa casa. Disse que eu estava comprando aquelas terras, mas que gostaria de contratá-lo para cuidar de outras terras minhas que estavam paradas. Ele me olhou desconfiado. Eu tirei da bolsa um pão e quis entregar. Ele não aceitou. Eu dei uma mordida no pão e ofereci de novo e ele pegou e comeu. “Eu pago bem”, disse a ele encarnando o personagem do fazendeiro rico. “Eu não queria deixar minha terrinha patrãozinho. É herança do meu pai”.
Foi uma longa conversa com muitos espectadores que passavam na rua e olhavam curiosos para dentro do valão. Aí ele cedeu. Acompanhou-me desconfiado e muito assustado entrou no carro. Quando chegamos a casa mostramos a ele tudo e o grande quintal de terra que tínhamos nos fundos da casa. Ele imediatamente começou a plantar sucata no chão do mesmo modo que fazia no valão.
O José não entrou na casa. O José não tomou banho. O José não mudou em nada a rotina que tinha naquele valão. Nesse momento eu entendi que trazê-lo para casa era apenas o início do processo. Ele passava o dia todo mexendo a terra e plantando tudo o que achava. Às vezes, me chamando de patrãozinho e pedia um pouco de água. Quando a gente levava um prato de comida ele despejava a comida no chão e devolvia o prato. Comia do chão. Suas roupas continuaram sendo os trapos e sacos de lixo e ele dormia sempre num canto do muro.
Eu era um jovem de 20 anos ensaiando pra ser um consagrado a Deus e aquele homem desumanizado me desafiava a cada dia. Às vezes eu o ajudava a plantar as sucatas no chão e conversávamos sobre a vida na tentativa de descobrir mais sobre ele e tentar entender o que o havia aprisionado naquele mundo estranho.
Três meses depois de ir para a casa, o José me chamou e perguntou se eu não lhe deixava tomar um banho na minha casa. Prontamente o levamos até o banheiro, arrumamos toalha e roupas limpas, shampoo e sabonete. Ele entrou, se molhou, vestiu os sacos de lixo e voltou para o quintal para plantar. Era um começo.
Um dia eu cheguei em casa e, para minha surpresa, o José não estava no quintal. Eu o vi sentado no refeitório, de banho tomado e com roupas limpas, comendo num prato com garfo na mão. Sentei-me diante dele com os outros irmãos e, em silêncio, o observamos enquanto ele comia. Ele me olhou e sorriu e me chamando pelo nome, não mais de patrãozinho, pediu um pouco mais de comida. A partir daquele dia o José não dormiu mais no quintal e não se vestiu mais com sacos de lixo. Seus canteiros de sucata foram se transformando em canteiros de verdura.
Uma certeza nós tínhamos: àquele mundo invertido o Luiz não voltaria mais. Talvez ele tenha vivido ali por décadas esperando que alguém entrasse lá e mostrasse a ele o caminho de volta.
Não é possível amar alguém se não se está disposto a entrar no mundo da pessoa. Às vezes esses mundos são incompreensíveis para nós. O José me ensinou a quebrar muitas barreiras. De certo modo ele também entrou no meu mundo invertido e me ensinou o caminho de volta. Ele me mostrou que o Amor para nos convencer, se mistura à nossa história. Era eu o homem vestido de trapos plantando sucata no meio do esgoto. Minha cegueira não me deixava perceber que era preciso confiar na mão estendida que insistia em me desinstalar. O José me ajudou a voltar e continua sendo um sinal de saída para mim até hoje!