Por Wilson Torres Nannini
Por Wilson Torres Nanini
Tenho a graça de residir, há 42 anos, na minha cidade de berço, onde vivenciei experiências tolas e ricas, mas todas muito marcantes. Até a puberdade, meus vizinhos coetâneos e eu jogávamos gol a gol na rua de casa, até lá pela meia-noite, só entrando para casa após graves ameaças de uso progressivo da força arbitrária da mãe ou do pai. Mas, não na Coresma: nessa época, nos recolhíamos às nossas casas tão logo escurecesse. Estremecíamos diante da possibilidade de os lobisomens passarem a rondar as ruas de nosso bairro, e se postar diante da soleira das portas de nossas casas, exalando seu bafo de inferno liberto, farejando nosso medo supersticioso, como agiotas nos cobrando os juros por travessuras indevidas, pelas mangas e mexericas que havíamos subtraído de pomares alheios.
Quem nunca recebeu alertas simplórios de que é preciso muito cuidado na Quaresma, pois nessa época o diabo fica à solta? Falam isso como se o pai-da-treva tivesse ganho um passe-livre que o autorizasse a promover desordens de toda sorte, apenas por quarenta dias e quarenta noites do ano.
É certo que os três episódios da tentação de Cristo não se restringem ao deserto geográfico, nem a um período específico do ano, mas podem se alastrar, o ano todo, por dentro de nós, testando as frestas na muralha de nossas virtudes, buscando por onde se infiltrar e promover ruínas. O diabo atiça o lobisomem da gente, como um moleque dos mais ardidos provoca um cão ferocíssimo na corrente curta?
Passei mais de 30 anos desdenhando o Plano de Salvação. O tempo que passei distante da Igreja foi o tempo em que larguei o lobisomem solto dentro de mim, sem coleira, livre para se alimentar com os frutos mortos de meus pecados. A verdade é que, por vezes, sem que percebamos, mal contemos o lobisomem que temos dentro. Devemos mantê-lo na corrente, e sem pão nem água! Quando permitimos que ele escape da corrente, faminto e sedento, mal sabemos como devolvê-lo à coleira. Mas a Quaresma, ah, a Quaresma tem um arsenal eficaz para abater qualquer lobisomem.
As propostas de jejum, penitência e caridade, as missas matinais, procissões, a austeridade dos ritos, o Sacramento da Reconciliação. E se o diabo está atiçando os nossos lobisomens, não estamos sozinhos para amansá-los. Anjos estão ao nosso redor, nos guarnecendo. A intercessão de Santos Canonizados e Santos Ocultos nos favorece. A Mãe Santíssima da Divina Providência recolhe nossas súplicas com ternura para que, com ternura, as deposite aos pés de Nosso Senhor. Somos obras do amor infinito de Deus, e sua misericórdia não é esmola, é tesouro interminável. E a Igreja, depósito perene da fé, nos oferece a Quaresma para a intensificação do aperfeiçoamento de nossa espiritualidade. Enquanto Igreja, nunca, mas nunca mesmo!, atravessamos o deserto de nossa intimidade vulnerável sozinhos. E, sobretudo, o Preciosíssimo e Diviníssimo Corpo-e-Sangue de Nosso Senhor Jesus cura nossa alma das marcas de mordidas e unhadas que, infelizmente, aceitamos que nossos lobisomens nos apliquem.
Wilson Torres Nannini, da safra de 1980, casado com a Carolina, é policial militar de Minas Gerais. Vive, trabalha e serve em Botelhos/MG. É autor dos livros de poemas “alcateia” (2013) e “escafandro” (2015), ambos pela Editora Patuá.