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DEUS É

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Por Wilson Torres Nannini

Deus é uma embriaguez saudável, uma quase levitação de nossos corpos pesados de desejos supérfluos sobre a efemeridade da existência. É um brinde primeiro e derradeiro entre formandos no baile, antes de se dissiparem pela vida, antes de serem apenas vaga lembrança nos corações uns dos outros.

Deus é mais real do que o celular ou o computador onde você lê este texto ingênuo. É mais real que o sofá, a cadeira, o banco onde você se senta agora para beliscar uma besteirinha calórica.

É a brisa que entra pela janela mal fechada, a chuva que faz a tarde aconchegante, o sol que rasga com suas línguas ardentes a pele vulnerável de seu rosto atônito, a escuridão vasta que há entre as estrelas do céu do quintal de sua casa. Deus é a silhueta nua da mulher sonolenta esgueirando-se madrugal da cama até o banheiro. É o luar que rompe o blackout das cortinas exaustas de tanta noite.

É um conluio de exemplares masculinos discutindo futebol e marcas de carro na mesa de um bar cervejeiro. Deus é a enfermeira madura acalmando com os olhos de relento benevolente o médico recém-formado para que ele faça sobreviver o feto extemporâneo revirado no ventre da parturiente adolescente. Deus é o policial que surge milagrosamente na geleira da noite para banir do mundo dos justos o estuprador prestes a assassinar a vítima subjugada.

Deus é a avó anestesiando com bolo de fubá com erva-doce os ralados nos joelhos do neto incauto de férias. Deus é a vizinha idosa viúva que lhe pede que troque o botijão de gás, apenas para amputar uns centímetros diários dos tentáculos pérfidos da solidão. Deus é o menino chorando sem consolo possível por sua pipa à deriva após o cerol da humilhação infante. Deus é o cão de rua festivo que veio se aninhar no tapete noturno de seu alpendre, para curar para sempre seu mal-humor gritante matinal.

Deus é o carro veloz que desmancha com água empoçada a soberba dos pedantes. Deus é a mãe peregrinando por filas de Prontos Socorros lotados com o filho semimorto de febre inominável a tiracolo. Deus é a certeza alegre que quase dói levemente nos rins de que o filho, a nora e os netos virão, enfim, no domingo que vem.

Deus é o pai que se interpõe entre o filho e o caminhão desgovernado. Deus é o revólver que falha na têmpora do suicida. Deus é o instante seguinte a uma vida à beira do abismo. Deus é a tia caçula ouvindo repetidas vezes vespertinas vitrola num domingo lento. Deus é o irmão desaparecido há décadas que passa por detrás do repórter dando notícias ao vivo do clima na cidade estrangeira.

Deus é o pai de um filho insabido ainda no ventre da namorada que ficara a atravessar a fronteira entre o México e o Texas. Deus é a moça que dispensa os afagos abortíferos. Deus é a caixa de supermercado que agradece ao professor aposentado por ter dito a ela um dia, na infância, que a dignidade é o maior salário.

Deus é a música esquisita que só você ouve numa manhã de sábado doméstico de faxina inevitável. Deus é o versículo bíblico que o ombro despido da passageira anônima do ônibus tatua na pele convertida de seus olhos ousados. Deus é o minuto de atraso ao voo rumo ao desastre. Deus é a família vizinha de toda uma vida que de repente se muda para sempre para uma cidade ainda sem nome no mapa. Deus é a derradeira noite de infância em redor da fogueira na rua de casa.

Deus é o menino morto atropelado a caminho do catecismo. Deus é o padre que chega do seminário na cidade corroída pelos cupins da ferrugem. Deus é o seminarista, o recruta, o calouro, que dizem sim apesar dos cataclismos esbagaçando tudo com suas ideologias nefastas. Deus é o suplente do décimo segundo apóstolo. Deus é o amargor que fica após um beijo furtado. Deus é o dulçor do pudim-de-leite que a mãe do aluno anfitrião oferta aos integrantes do grupo da feira escolar. Deus é a irmã solteirona idosa evitando que se formem escaras na irmã terminal.

Deus é um silêncio bilígue na boca dos noivos recém-casados ainda no altar. Deus é o filho que não virá. Deus é a falha que legisla num mundo sem regras. Deus é a falta que ensina num mundo de abundâncias supérfluas.

Wilson Torres Nannini, da safra de 1980, casado com a Carolina, é policial militar de Minas Gerais. Vive, trabalha e serve em Botelhos/MG. É autor dos livros de poemas “alcateia” (2013) e “escafandro” (2015), ambos pela Editora Patuá.