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DUPLO PROCESSO DE LIBERTAÇÃO: DO FARAÓ DO EGITO AO FARAÓ INTERIOR

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Richard Oliveira

O povo de Israel, como conta o livro do Êxodo, passou pelo que podemos chamar de dupla libertação: num primeiro momento a libertação da escravidão do jugo do Faraó do Egito; num segundo momento a libertação do “Faraó interior”, num longo processo de constituição do povo educado por Iahweh na caminhada pelo Deserto.

Assim lê-se: “Os egípcios obrigavam os israelitas ao trabalho, e tornavam-lhes amarga a vida com duros trabalhos: a preparação da argila, a fabricação dos tijolos, vários trabalhos nos campos, e toda espécie de trabalhos aos quais os obrigavam” (Ex 1, 13-14).

Apesar da dureza da escravidão vivida pelo povo e, da clara necessidade de libertação e mudança de realidade, o povo também teve muita dificuldade em entender e aceitar a proposta de Moisés. No capítulo sexto pode-se ler a seguinte queixa de Moisés: “Eis que os israelitas não têm ouvido. Como então ouvirá o Faraó? Eu não sei falar com facilidade” (Ex 6, 12). Moisés fala assim a Iahweh, pois, depois de ter lhes comunicado o anúncio de Iahweh, o povo não lhe dá ouvidos. Assim, desde o capítulo quinto, até a narração da travessia do mar, o povo de Israel oscila entre querer confiar na palavra de Moisés e no projeto de Iahweh e o medo de enfrentar a ira do Faraó para sair do jugo da escravidão.

O texto do Êxodo segue apresentando todos os sinais que Iahweh realizou por meio de Moisés e que endureciam ainda mais o coração do Faraó. O povo também viu todos os sinais, como também pôde perceber que a mão de Iahweh estava com eles. Transcorridos os quatorze capítulos iniciais, o povo aceita seguir Moisés e Aarão para o Deserto, tendo a permissão do Faraó para partir.

Na falta do Faraó e dos que os dominavam e impunham a escravidão em troca de comida, o povo impõe o papel de provedores à Moisés e Aarão: “Antes fossemos mortos pela mão de Iahweh na terra do Egito, quando estávamos sentados junto à panela de carne e comíamos pão com fartura! Certamente nos trouxestes a esse Deserto para fazer toda esta multidão morrer de fome” (Ex 16, 3). Este povo, que muitas vezes vemos como um povo mimado, repetidamente fará queixas semelhantes e, mesmo vendo muitos sinais no Deserto, terão grande dificuldade em compreender que Iahweh caminha com eles e os prepara para a vida numa Terra Nova. Como numa escola, Iahweh, por meio de Moisés, educa o povo para que compreenda o projeto de povo que ele quer, mas que para isso, precisa de homens livres.

Podemos reconhecer como o auge da necessidade de exteriorização da figura do “Faraó interior”, a passagem de Êxodo 32, na narrativa do Bezerro de Ouro. Para o povo, o bezerro é símbolo de Iahweh. Não é outro Deus como comumente se vê interpretado. A questão é tentar “aprisionar” ou reduzir Deus a um símbolo. No Egito, o Faraó era um deus visível, mas ausente da vida do povo. Sua ação era sempre a repressão. No deserto o povo faz a experiência do Deus invisível, mas que se pode perceber próximo da realidade do povo. Esse Deus que se deixa ver nos acontecimentos, mas que não se pode ver-lhe face a face. Nos capítulos precedentes, há toda a estruturação da aliança que Iahweh faz com o seu povo, simbolizada nas tábuas do testemunho escritas pelo próprio dedo de Deus (Ex 31, 18). Mas, o povo, por impaciência, tem a necessidade de um “deus” que vá a sua frente. Como é grande o mistério ante a Montanha de Deus, sua decisão é construir um símbolo que aprisione a presença de Deus, para o qual possam fazer festa e oferecer sacrifícios.  Sua experiência de Deus não era capaz de compreender uma presença libertadora que faz comunhão. Aquele povo, para ser o povo de Deus, precisaria ver-se livre e livre das velhas constituições de organização social. Eles não precisavam de um símbolo para lhes guiar. O próprio Deus estava no meio deles.

Como o povo de Israel, também nos nossos tempos padecemos das mesmas dificuldades. É difícil ser livres e saber lidar com a liberdade. É mais fácil estar subjugados por uma pessoa, um símbolo ou uma ideia. Temos a impressão que Deus está cada vez mais distante ou mais aprisionado em símbolos ou lugares. Vemos sinais que nos revelam essa presença de Deus no nosso meio, mas preferimos materializa-lo em bezerros de ouro, pois é mais fácil “adorar” um ostensório de metal (independentemente do que ele porta), que “comer” um Deus que se parte para nos mostrar que é preciso fazer a mesma coisa.

“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Lc 8,13).