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Entrevista: Paulo Apóstolo numa linguagem malcomportada

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O portal Katholika começou sua missão no mês de setembro, mês em que a Igreja no Brasil dedica especial atenção à meditação e estudo da Palavra de Deus. E não é por acaso. Anunciar a Boa Nova, para que homens e mulheres alcançados pelo amor de Jesus tenham a chance de transformar-se, é a missão que o Katholika assume para si desde as primeiras ideias germinais. Transformar vidas foi o primeiro fruto da Encarnação do Verbo de Deus. Transformar vidas foi o intento da missão apostólica de Paulo de Tarso. “Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!” (2 Cor 5, 17).

Por isso, falar do anúncio da Palavra de Deus nos diversos formatos possíveis para atingir aos homens e mulheres do nosso tempo, é tão importante e singular. Assim sendo, não se pode excluir o trabalho árduo de homens e mulheres que dedicaram e dedicam toda uma vida sendo ponte entre a mensagem original de Jesus e a nossa compreensão. O trabalho incansável de tantos tradutores, que se debruçam sobre os textos gregos e hebraicos e os fazem compreensíveis nas mais diferentes línguas, permite que as pessoas tenham acesso à mensagem mais fiel do Evangelho.

Um desses homens é o Padre José Luiz Gonzaga do Prado, que para os seus amigos, irmãos de comunidade e alunos é apenas “Zé da Donana”.

Padre José Luiz nasceu na cidade de Paraguaçu, Minas Gerais, em 11 de janeiro de 1935. Filho de Abel Horta do Prado e Ana Cândida do Prado (por isso Zé da Donana). Estudou Filosofia no Seminário Coração Eucarístico de Jesus em Belo Horizonte e Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Foi ordenado sacerdote aos 24 anos no dia 25 de outubro de 1959, na Capela do Colégio dos Lassalistas, em Roma. Sua primeira missa, quis celebrar nas Catacumbas de São Calixto, em Roma, para um número pequeno de fiéis. Escolheu como lema de ordenação: “Para levar aos homens a salvação em Jesus Cristo”.

Na área bíblica, fez Mestrado em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico em Roma. Atuou em trabalhos de tradução nos Evangelhos de Marcos e de Mateus para as Bíblias Pastoral, da CNBB, Nova Bíblia Pastoral e revisão da Bíblia na Linguagem de Hoje. Atou como professor por 25 anos no Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto (CEARP/FACARP), e desde 2013 integra o corpo docente da Faculdade Católica de Pouso Alegre (FACAPA).

Um homem culto e dedicado aos estudos das Escrituras, encontrou desde há muito tempo no meio das pessoas simples e iletradas o que considera como sua maior escola. Desde outubro de 1983, com Provisão passada na Cúria Diocesana de Guaxupé, foi nomeado Coordenador das Comunidades Eclesiais de Base na Diocese por Dom José Alberto Lopes de Castro Pinto. Foi criada uma Coordenação diocesana e, desde então, foram promovidos 36 Encontros Diocesanos das Cebs.

Um de seus últimos trabalhos na área Bíblica, ainda não lançado, é uma tradução livre das Cartas Genuínas de Paulo. Seu projeto é expor o fruto de anos de estudo e dedicação numa tradução que aproxime a linguagem original dos textos à linguagem mais compreensível ao povo.

Chegando já ao final deste mês da Bíblia, o Katholika conversou com o Padre José Luiz sobre esse projeto:

Katholika:  O que o senhor pode nos dizer sobre Paulo Apostolo? Quem foi ele e qual a importância de seu ministério para o cristianismo nos seus inícios?

Pe. José Luiz: Um fariseu de estrita observância das “tradições dos antepassados”, a Lei escrita e oral, que reconheceu Jesus como o Messias universal e, então, tornou-se o evangelizador dos gentios ou não judeus. O cristianismo, que poderia ter ficado apenas como um movimento a mais dentro da religião judaica, tornou-se universal.

Katholika: O senhor desenvolveu um projeto para as cartas genuínas de Paulo. Conte-nos um pouco sobre do que se trata esse projeto e como o senhor o desenvolveu?

Pe. José Luiz: A partir das Cartas incontestáveis de Paulo (1Ts, Fl, Fm, 1Cor, 2Cor, Gl, Rm) com duas características principais, uma tradução menos comportada e mais clara e com a busca da origem e história de cada Carta, ousando inclusive separar fragmentos diferentes que, na Bíblia, terão sido ajuntados numa só Carta.

Katholika: Como os textos de Paulo podem iluminar a caminhada das comunidades nos dias de hoje?

Pe. José Luiz: Devem iluminar, coisa que ainda não acontece. Em um mundo, Império Romano, organizado em classes de patronos e clientes, ou seja, padrinhos e afilhados, protetores e protegidos, Paulo só conhece uma categoria: irmão. Nunca chama o povo de filhos e filhas, só irmãos ou irmãs. Não há mais isso nem aquilo, somos todos iguais, todos irmãos. O povo não pertence aos missionários, “eu sou desse, eu sou daquele”, o missionário é que pertence ao povo, está a serviço dele etc. O Messias não é um rei poderoso, é o Servo de Javé, que vence a violência sendo vítima de toda violência humana, sem jamais cometer qualquer violência. Vence o orgulho sendo o mais humilhado de todos, vence a ganância sacrificando tudo em favor do outro.

Katholika: O senhor tem um trabalho relevante nas traduções dos textos das Sagradas Escrituras para a língua portuguesa. No seu projeto para as cartas paulinas, o senhor escolheu quais critérios para que a linguagem esteja mais acessível às necessidades das pessoas?

Pe. José Luiz: Como já disse, numa linguagem malcomportada, mas clara, por exemplo, misturando pronomes, você com teu, tua, da maneira como a gente fala aqui na nossa região. Quanto ao vocabulário próprio de Paulo, algumas palavras que ele usa com frequência como “carne”, “fé”, “justiça”, “obediência”, com significado diferente do nosso ou diferente em cada lugar, coloco junto, ligada com um hífen, outra palavra que esclarece o significado da primeira naquele contexto. “Cristo”, que dá impressão de ser o sobrenome de Jesus, mas é a palavra grega que significa messias, palavra hebraica que significa ungido, traduzo cada vez de um modo, em alguns lugares Jesus é o “Ungido”, outros é o “Messias”, outros é o “Cristo”.

Katholika: O senhor apresenta uma grande admiração pela figura do Apostolo Paulo. O senhor pode compartilhar conosco qual a influência de Paulo na sua própria vida e na sua caminhada vocacional?

Pe. José Luiz: Uma característica de Paulo que sinto corresponder também à minha índole é a clareza de ideias e firmeza nas decisões. Outra é o ministro, empregado e não senhor do povo. Outra é a busca do último lugar e não o primeiro. Outra é falar na linguagem familiar a cada rede de comunidades, a do trabalho pesado para os trabalhadores de Tessalônica, do comércio para os pequenos negociantes de Filipos, do direito para os romanos etc.

Katholika: O senhor dedicou parte considerável da sua vida no acompanhamento das Comunidade Eclesiais de Base (CEBs). Seu trabalho com as comunidades tem inspiração nas comunidades Paulinas?

Pe. José Luiz: Melhor inspiração não poderia ter: começa formando grupos de reflexão, depois organiza a comunidade onde todos são sujeitos e protagonistas aprovando um conselho de anciãos (Atos dos Apóstolos) ou de bispos (Fl 1,1) com distribuição de ministérios.

Katholika: Das palavras de Paulo, qual delas é a que mais lhe inspira e por quê?

Pe. José Luiz: É o corpo da Carta B aos filipenses: A – notícias da prisão e das lutas; B – assumir a cidadania de acordo com o Evangelho e sem medo dos adversários; C – Ser comunidade perfeita, cada qual buscando ser o último e só pensar no melhor para os outros; C’ – a exemplo de Jesus, coerente até a morte maldita (Dt 21,22-23) de cruz; B’ – ser um farol nesse mundo de trevas e corrupção; A’ – notícias de Paulo e dos companheiros de luta.

Aqui vale uma nota explicativa para melhor compreensão da resposta que o Padre José Luiz dá a essa última questão. Ele organiza o corpo da Carta B aos Filipenses (ele está chamando de carta B o que se refere à Fl 1,1-4,23) num esquema de Paralelismo, próprio da Retórica Semita. Para fazer entender esse estilo literário, citamos a explicação que o próprio padre faz em seu artigo intitulado “O PARALELISMO, A RETÓRICA SEMITA”: “A linguagem da Bíblia é sempre uma linguagem poética e a poesia fala por todos os meios e recursos. O básico, o principal da poesia hebraica, é o chamado paralelismo. E esse recurso está presente em todos os escritos da Bíblia. Chama-se paralelismo porque é o jeito de falar que coloca as expressões ao lado umas das outras, como se fossem linhas paralelas.  (…) As unidades paralelas se correspondem como os elementos de um sanduiche: Uma fatia de pão no começo e outra no fim (A- e A’-), depois viriam no segundo e no penúltimo lugar duas fatias de queijo (B- e B’-), depois mais duas unidades paralelas e, assim por diante, até chegarmos ao miolo do sanduiche. É assim geralmente que o semita fala e raciocina. Essa maneira de se expressar é chamada retórica semita”.

Em tempos nos quais a Palavra de Deus torna-se uma ferramenta de dominação, o trabalho sério e dedicado desses homens e mulheres que fazem a ponte entre a Escritura original e a nossa compreensão, torna-se cada vez mais necessário. O Padre José Luiz gosta muito de citar no início de suas aulas, o que Bento XVI escreveu no final do nº 19 da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini: “Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na qual podemos ouvir a voz do Senhor e conhecer a sua presença na história”.

Que a Palavra de Deus seja uma lâmpada para os nossos passos!