Pesquisar
Close this search box.

Entrevista: Jesus, a palavra que se fez carne. Padre Demétrio fala sobre o mês da bíblia.

entrevista-com-pe-demetrio

Em 06 de abril de 2014, o Papa Francisco, durante a oração do Ângelus, assim falou: “Hoje se pode ler o Evangelho também com muitos instrumentos tecnológicos. Pode-se trazer consigo toda a Bíblia num telefone celular, num tablet. O importante é ler a Palavra de Deus, com todos os meios, e acolhê-la com o coração aberto. E então a boa semente dá fruto!”. Nessa, como em outras ocasiões, Francisco indica que a bíblia não é um elemento meramente decorativo, que deva ficar num pedestal, mas, é uma palavra que precisa ser lida, ouvida, meditada e, acima de tudo, ter aderência na vida cotidiana.

Desde 1971, a Igreja Católica no Brasil dedica o mês de setembro como tempo especial de contemplação e estudo da Palavra de Deus. O mês da bíblia teve início em Belo Horizonte, por ocasião do cinquentenário da arquidiocese de Belo Horizonte naquele ano. Posteriormente foi assumido pela CNBB e passou a ser celebrado todos os anos pela Igreja no Brasil.

O Katholika conversou com o Padre Demétrio Gomes sobre o mês da Bíblia. O Padre Demétrio é Bacharel em Filosofia e Teologia pela Universidade de Navarra – Espanha. É Mestre em Direito Canônico pelo Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro e Doutorando em Direito Canônico pela Universidade de Navarra – Espanha. Atua como Pároco, Vigário Judicial do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de Niterói e é Professor de Direito Canônico e Teologia Moral do Instituto Filosófico e Teológico do Seminário Arquidiocesano São José de Niterói.

Padre Demétrio

Entrevista

KATHOLIKA: Como o senhor vê A iniciativa da Igreja no Brasil de dedicar o mês de setembro à Palavra de Deus e de que forma essa iniciativa colabora para que o povo católico tenha mais contato com a Palavra de Deus?

PADRE DEMÉTRIO: As Sagradas Escrituras sempre ocuparam um lugar central na vida da Igreja, e, portanto, nunca serão demasiadas as iniciativas apostólicas, tais como essa da Igreja do Brasil, para ajudar os fiéis a venerar cada vez mais os textos sagrados, e aprofundar no seu estudo e contemplação. A acolhida dessas iniciativas por parte de nossas paróquias e comunidades não devem, no entanto, se perder em elementos acidentais, tais como a confecção de materiais publicitários, a elaboração de comentários litúrgicos etc.

Tudo isso pode ser um instrumental útil à serviço da Palavra, porém o mais importante é que essas iniciativas gerem meios efetivos para conduzir o fiel a um contato pessoal e direto com a Palavra do Deus vivo, principalmente por meio da Sagrada Liturgia e da leitura orante das Escrituras.

KATHOLIKA: É bastante comum ouvir que católico não tem a mesma familiaridade com a palavra de Deus que os protestantes. O senhor estaria de acordo com essa afirmação?

PADRE DEMÉTRIO: A relação que os católicos deveriam ter com a Palavra de Deus não pode ser equiparada à concepção protestante sem mais. Em primeiro lugar, é necessário ter em conta que a Palavra de Deus é, antes de mais nada, uma Pessoa, o Verbo Eterno do Pai, a Segunda Pessoa da Trindade Santíssima, que assumiu a nossa natureza humana na plenitude dos tempos no seio puríssimo da Virgem Maria. O cristianismo para os católicos não é uma “religião do livro”, mas da Palavra que se fez carne.

A familiaridade com a Palavra é, portanto, um trato de amizade e intimidade com uma Pessoa, e é nesse contexto que entendemos o lugar das Sagradas Escrituras. A Bíblia não é um livro que nos tenha sido dado pronto diretamente por Deus, como que caído do Céu, mas uma obra que foi sendo preparada pela ação do Espírito Santo no seio da Igreja Católica, e que, juntamente com a Sagrada Tradição nos transmitem a Revelação de Deus aos homens, constituindo ambas a regra suprema da fé da Igreja.

Aqui tocamos num ponto crucial, que marca uma grande diferença entre os católicos e os protestantes no que diz respeito à relação com a Palavra de Deus: para nós católicos, a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto escrita por inspiração do Espírito Santo, e a Sagrada Tradição o meio de transmissão integral dessa mesma Palavra divina, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos apóstolos, para que eles e os seus sucessores a conservassem, expusessem e difundissem fielmente, de geração a geração.

Assim, não é apenas da Sagrada Escritura que a Igreja adquire sua certeza a respeito da Revelação divina, mas da Escritura e Tradição, que, formando uma indissolúvel unidade, constituem o caminho pelo qual temos acesso a Deus se revela e comunica a si mesmo aos homens. Por isso, a familiaridade com a Palavra de Deus, vai muito além do contato com a letra das Escrituras. Implica a escuta e a meditação do texto sagrado dentro da atmosfera onde este nasceu, que é a Igreja, e isso se dá não apenas por meio da materialidade das páginas da Bíblia, mas da Palavra viva, crida, rezada e proclamada de diversos modos pela Igreja.

KATHOLIKA: O Concilio Vaticano II e o magistério dos Papas pós concilio chamaram a atenção da Igreja para a necessidade de se voltar às escrituras. Como o senhor avalia o caminho que está sendo feito pela Igreja nas últimas décadas para a aproximação de fiéis e escrituras?

PADRE DEMÉTRIO: Efetivamente, o Concílio Vaticano II e o Magistério pontifício posterior têm insistido muito no valor das Sagradas Escrituras para a vida dos fiéis e da Igreja. Por citar dois grandes documentos, que tratam diretamente do tema, bastaria recordar a Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, e a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, do Papa Bento XVI, além das contínuas referências dos últimos pontífices em seus diversos documentos e pronunciamentos, bem como nos documentos dos órgãos da Santa Sé e do Magistério nas Igrejas Particulares.

É claro que nossa resposta a esse apelo da Igreja sempre estará aquém daquele que podemos oferecer, porém creio que muitos progressos têm sido realizados. Além do enorme número de publicações surgidas tanto no campo científico do estudo das Escrituras, como em obras mais amplas de divulgação, destacaria o papel fundamental dos novos meios de comunicação.

Com o desenvolvimento tecnológico nos últimos anos, tem sido muito comum o acesso dos fiéis aos textos sagrados, seja diretamente por meio das plataformas digitais (sites, aplicativos, etc.), bem como de forma indireta, com a facilidade de acesso a pregações, homilias, cursos bíblicos, etc., pelos meios de comunicação audiovisuais provenientes do avanço da internet. Sempre há um risco que o recurso a esses meios conduza a um contato mais superficial do que aquele que implica uma maior concentração, estudo e meditação dos textos sagrados impressos, mas sem dúvida é um sinal bastante positivo dos nossos tempos.

KATHOLIKA: Todo padre é chamado a ser um “Homem da Palavra”. O senhor pode compartilhar conosco um pouco da sua experiência pessoal com o estudo da Palavra de Deus?

PADRE DEMÉTRIO: A Sagrada Escritura constitui o ponto de referência imprescindível para a missão de ensinar, confiada aos sacerdotes. Nós precisamos ter a consciência de que fomos constituídos sacerdotes para anunciar a Palavra do Senhor, não as nossas ideias próprias. Somos chamados a viver com Cristo e para Cristo, e, portanto, fazer nossa a Sua Palavra, tornando-a própria. Para isso, precisamos ser primeiramente bons ouvintes, interiorizarmos essa Palavra numa intensa comunhão interior, para, então, a pregarmos, a fim de que o povo de Deus possa reconhecer em nós sacerdotes a voz do próprio Bom Pastor.

Diariamente, a Igreja, como boa Mãe, me alimenta com a Palavra de Deus na Santa Missa, na Liturgia das Horas, e me convida a aprofundar essa mesma Palavra nos diversos momentos da minha oração pessoal, tais como a meditação com os textos sagrados, e a contemplação dos mistérios da vida de Jesus durante o Santo Terço, no estudo teológico das Sagradas Escrituras, na preparação das pregações, aulas e catequeses, enfim. Posso dizer que não há um único dia de minha vida que não ouço Deus me falar por meio de Sua Palavra. Ele fala conosco todos os dias!

KATHOLIKA: Há sempre uma Palavra que nos inspira. Qual passagem da Sagrada escritura o senhor tem como referencial e por quê?

PADRE DEMÉTRIO: Difícil selecionar um texto único das Sagradas Escrituras, quando há tantos que nos inspiram nos diversos momentos de nossa vida. Contudo, como tem se tornado um costume selecionar um versículo bíblico, que, de alguma forma, inspire a nossa vocação sacerdotal, por ocasião da minha ordenação, escolhi um trecho do primeiro versículo do capítulo XIII do Evangelho segundo São João: “Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai; tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”.

A frase que escolhi foi: in finem dilexit eos. Creio que ela sintetiza toda a vida de Nosso Senhor aqui nesta terra. Esse “até o fim” não se refere tanto a uma questão temporal, indicando que o Senhor já estaria ao final de sua vida terrena, senão à intensidade do amor de Cristo, que ama até o extremo, até “não poder mais”, já que ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Entendo que a vida do sacerdote, homem configurado sacramentalmente a Cristo – sendo ele Ipse Christus (o mesmo Cristo)! – deve ser também assim, uma entrega sem limites por amor ao próximo, que implica a renúncia do próprio eu, da própria vida.

Nisso consiste a maior realização do amor e, portanto, do máximo que podemos realizar, com a graça de Deus, aqui nessa terra. Aqui encontra o sacerdote o sentido de tudo: em amar como Jesus ama!