Por Wilson Torres Nannini
Estou em dívida para com Dostoiévski. Tenho suas principais obras, mas não avancei nem 10 páginas. Meu paladar latino-americano afeito aos Riobaldos, Capitus e Coronéis Aurelianos Buendias acha por demais repletos de nervuras incomestíveis os russos Karamázov e Raskôlnikov. Mas sei, quase que a partir de para-choque de caminhão, que é (erroneamente) atribuída a Dostoiévski a frase “Se Deus está morto, tudo é permitido”.
Muitas pessoas, no carnaval, só podem achar que Deus está morto e, então, que a virtude não é necessária. Sentem-se autorizadas a desgovernar o livre-arbítrio. O carnaval parece destrancar o cofre de proibições. O uso imoderado de bebidas alcoólicas é quase um sopro tímido no redemunho de distúrbios, que vão desde o aumento de agressões físicas, uso de drogas, acidentes, até atos obscenos públicos de casais que, ao som de marchinhas ridículas, ou instigados pela pulsão fanqueira, estabelecem entre si vínculos tão efêmeros como o frescor da chuva rala no deserto escaldante.
Nenhum PM tira férias no Carnaval. A tropa toda deve estar à disposição para fazer frente à demanda que se multiplica nesses 4, 5 dias do ano. Não conheço nem uma mãe de policiais militares que gostam do carnaval. Pelo contrário! Quando perguntamos uns aos outros quantos anos faltam para a “aposentadoria”, muitos respondemos: “Para mim, faltam 10, 15, 20, 30! carnavais.
Podem dizer de mim: “Ele não poderia gostar mesmo do carnaval, já que tem por abadá um colete balístico de quase 10 kg”. Mas minha aversão ao carnaval não é tão rasa. Está enraizada no coração cristão, que se entristece pela adesão de seus semelhantes incautos ao extravio de seus valores imprescindíveis.
Ou é arrogância imaginar ser possível eu pecador ser como um beija-flor altruísta que içasse do brejo um cavalo atolado no próprio peso?
Já estou há 20 carnavais nesta labuta. Para mim, o que há de bom no carnaval é o seu fim. Não falo do fim-fim, o extermínio da possibilidade dessa festa deletéria. Digo que aguardo a “Coresma”, esperançoso pela tríade de desagravo. Busco atravessar o Tempo Quaresmal com disciplina, devoção e amor. De fato, é nesse Tempo Litúrgico que tiro de dentro de mim as tranqueiras com que pensava poder obturar meus vazios. Cada texto da Liturgia Quaresmal é um templo em si, algo que me confere o silêncio hospitaleiro e seguro da oração contemplativa. A penitência oferta a possibilidade de remissão ao meu coração que, por vezes, se curva à oferta de reinos nocivos. E o jejum me faz ver o quão precioso é matar de fome o lobisomem que se alimenta de mim por dentro.
Ainda me faltam uns 10 carnavais para poder, enfim, me exilar em locais em que o Carnaval não ocorra. Sonho com um ranchinho sereno! E finalmente, sem encargos trabalhistas, passar os dias que antecedem a “Coresma” lendo tranquilamente Guimarães Rosa, García Márquez, Dostoiévski.
Wilson Torres Nannini, da safra de 1980, casado com a Carolina, é policial militar de Minas Gerais. Vive, trabalha e serve em Botelhos/MG. É autor dos livros de poemas “alcateia” (2013) e “escafandro” (2015), ambos pela Editora Patuá.