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IN-VERSOS: O mistério da fé no pouso das borboletas

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Por Gilvair Messias

Crianças não sentem vergonha de sonhar na frente das pessoas. Não me refiro a estes sonhos passivos. Mas àqueles que envolvem o corpo, a vida. Na minha infância, eu assumia muitas profissões, ou melhor, diversões. Uma criança nunca é o pouco da sua idade. Dentro dela moram experientes gênios, mestres, astros, heróis… Quem vê apenas o seu corpo pequeno não faz ideia de que nela estão guardados todos os objetos de amor, admiração e beleza.

Gosto de falar sobre as religiões. Acredito que cada uma delas nasceu do desejo. Desejo é este negócio que faz a criança correr atrás da borboleta querendo pegá-la sem consegui-la por completo. No início de toda religião há uma borboleta que pousou sobre o ser humano e disse: vem, me pega! Por isso, querer provar uma “verdade religiosa” é o mesmo que estudar, com afinco, a corrida de uma criança em busca da borboleta. Destes experimentos só conseguiremos descobrir brincadeiras. Afinal, religião verdadeira é aquela que deixa Deus brincar com os desejos das pessoas!

Brinquedo é uma coisa que deve ser levado a sério. Não sei se as fábricas de brinquedos sabem da responsabilidade que elas possuem sobre o futuro da humanidade. Discordo da expressão: “toda brincadeira possui um fundo de verdade”. Para mim, toda verdade é uma brincadeira que deu certo. Somos o que brincamos.

Brinquedo pronto, para mim, não é brinquedo, é máquina. Brincar é fazer memória de um sonho e torná-lo real com a imaginação, com fé, com as mãos. Só é brinquedo aquilo que não é, mas que faz-nos sentir como se fosse. É Desejo: algo que já está presente sem ainda ter chegado. Ah, ele é que faz a memória transformar-se em atualidade, a criança buscar a borboleta.

Para se ter fé é preciso ser criança. Acreditar. Fazer que algo seja o que na aparência não é. A eucaristia me faz pensar em tudo isto. Fazer memória de Jesus Cristo no pão e no vinho?!? Bem que Ele sabia do que a memória desperta nas pessoas. A memória de alguém faz a gente sentir os seus desejos. Envolver-se com ela é perigoso. De repente, tornamo-nos esta pessoa. Assim, eu era professor, cantor e apresentador nos meus tempos de infância. Por fora se via apenas o meu corpo. Mas por dentro… toda esta gente fantasiada vivia em mim.

Imagino Jesus (humano como Ele foi) perguntando às pessoas quais eram os seus maiores desejos. E elas respondendo: um pão fresquinho com uma taça de vinho da melhor qualidade. Bem que Ele sabia que matar a fome é o maior desejo do ser humano. E ainda mais: que a fome é a mãe de todos os outros desejos. Desejar é ter fome de algo, é pressentir o sabor do que ainda não está na boca. E assim Ele disse: “Eu sou o pão da vida, tomai todos e comei”. Fazer-se pão, neste sentido, é o mesmo que se fazer desejo humano. “Estão vendo? Olhem: Isto é o meu corpo, isto é o meu sangue. Quem come deste pão e bebe deste vinho viverá eternamente”.

Que alimento é este que torna as pessoas eternas? Quando estamos sem entusiasmo para viver, ficamos depressivos, desmotivados, mortos. Só uma vida de desejo e intimidade é capaz de ser eterna. Desejar é a marca registrada de nós humanos: seres caminhando ao alcance da borboleta, tão próxima, mas sempre voando para a buscarmos… É isto que faz-nos eternos: essa busca constante. Por isso, o pão e o vinho são memória de Jesus ao encher-nos dos seus desejos (que, na verdade, são memória dos nossos). E aí, passamos pelo mundo deixando rastos da eternidade. Viver eternamente é sentir fome: de vida que sacia desejos (nossos e do mundo).

O pão memorial de Jesus é partilhado. Alimentar-se sozinho é um gesto “narcízico”. Desejo bom é realizado com alguém. Comunhão é uma palavra belíssima. Quer dizer o abraço entre muitos desejos. Por isto se diz: o “corpo de Cristo”. Nele mora a vida desejante de cada ser humano, de cada ser. Da união de desejos, surge uma fome… De amor. Dele, ninguém é saciado por completo. Sempre há alguém para ser amado. Sem a comunhão de pessoas e povos não é possível atingir o gozo da felicidade.

Na minha infância, eu fazia memória dos brinquedos que via nas lojas por não tê-los em minha casa. Para ser sincero, o que eu desejava não era o brinquedo, mas a brincadeira. Eu brincava com os meus desejos mais profundos. Alguma borboleta pousava sobre minhas mãos de moleque. Qualquer pessoa que me visse poderia dizer: ele está brincando com um pedaço de madeira. Mas, eu dizia: isto é um trator! Amei várias coisas, jogadas no meu quintal, como latinhas de extrato de tomate e caixinhas de fósforo porque neles eu fazia memória dos meus sonhos. Meu carinho e cuidado para com esses objetos demonstravam que eles eram consagrados pela minha imaginação. Eis o mistério da fé!       

 

Gilvair Messias é professor graduado em Filosofia, História e Teologia. Mestre em Teologia. Especialista em Comunicação e Cultura e também em Psicanálise Clínica. Autor de livros e administrador do perfil @sentimentos_de_poeta_no_diva.